quinta-feira, 15 de janeiro de 2009
A minha outra
Ontem foi ela que tomou conta do meu corpo.
Não sei se porque de manhã me senti acossada perante uma cobrança materna às 9 da manhã:
-"Telefonaram-me do banco, porque é que ainda não me encerraste a conta?"
Ou talvez pela hora de almoço em que tive de engolir uma sopa num gole profundo para ainda ter tempo de descobrir os correios para enviar uma carta da minha mãe, correr ao banco para depositar um cheque do meu marido e de caminho passar em casa para temperar o jantar.
O trabalho correu como de costume, sem stress absolutamente nenhum, ou melhor, com o stress habitual de quem não tem nada para fazer, o ponto alto do meu dia profissional é invariavelmente ...a hora da entrada e a da saída porque mexo os dedos para assinar o livro de ponto. As 6 da tarde são providenciais, porque posso finalmente deixar de fingir que me sinto confortável com uma função que não é a minha e que nem sequer exerço.
O segundo contacto do dia com a minha mãe não foi mais feliz que o anterior, pois foi para me pedir para lhe carregar o telemóvel.
O meu filho chorou o caminho todo da creche até casa porque queria comer uma bolacha imaginária que eu, obviamente, não tinha, e chorou também à porta de casa porque queria ver a vizinha do lado a tomar banho.
Depois de lhe dar o banho, tocou o tambor furiosamente e soprou a flauta como se não houvesse amanhã, enquanto eu tentava lavar a grelha que o meu marido sujou e não limpou há 2 dias atrás, tirava a louça lavada da máquina - tarefa incumbida ao marido no dia anterior, enquanto eu trabalhava no segundo emprego, e naturalmente não realizada. Lavei a casa de banho da cadela com lixívia, o que me confundiu os sentidos e creio que lhe abriu a nesga para sair e se apoderar de mim.
Não sei se terá sido aos poucos ou se por arrebatamento, não sei se por minha vontade ou por vontade dela, mas sei que depois de queimar a batata doce que tinha destinado a puré e de ter esperado até às 21.30 por jantar, no único dia da semana que tinha para partilhar uma refeição em família, ela tomou o meu lugar.
Pegou no telemóvel e ligou ao meu marido:
-"Estás à espera de quê para vires para casa jantar? Estou farta de ti, do teu filho, da tua cadela. Estou farta desta vidinha de merda e quero partir tudo o que se me aproximar."
Desligou o telefone sem esperar resposta, pegou na criança e meteu-a na cama sem lhe dar de jantar, sem explicações.
Foi para a cozinha arrumar o pouco que me falhou, com raiva e violência. A mim que me competia controlá-la, doía-me o peito, sem sentidos estava à sua mercê.
Quando ele chegou espantado com o telefonema e confundido pelas palavras, ouvi-o perguntar:
-"Mas que raio se passou? Sabes que estava a trabalhar, achas sempre que passo lá pouco, embora seja apenas um apoio técnico de avença, e quando lá vou reclamas que não estou em casa. Não te compreendo?!"
Ela olhou-o em silêncio com um desprezo indiscritivel, e eu tentava em vão mandá-la de volta para dentro da minha alma, creio que foi daí que ela se escapou, mas todas as minhas forças se tinham esvaído. Achei que se morresse a podia vencer, peguei na caixa dos comprimidos, mas ela não me deixou tomar mais de 2, voltou a guardá-los embora eu tentasse, em vão, resistir-lhe.
Durante a refeição não proferiu palavras, antes arremessou pedras com o que se assemelhava a sons e raios com os olhos.
Atirou a louça para dentro da maquina enquanto eu lhe rogava que voltasse a adormecer, mas ela sentia-se poderosa. Sentia-o na pobre cadela que estremecia à sua passagem, no olhar estremunhado do bébé enquanto o pai lhe dava finalmente de jantar, a uma hora que não era a dele, e sentia-o no incomodo que causava a sua presença no meu marido. Estava difícil de me reconhecer nela.
Eu continuava a tentar respirar fundo, tentava utilizar as técnicas de meditação que venho aprendendo aos sábados, tudo para a pôr no seu lugar, tudo para me retomar.
ela foi até à sala, onde talvez por medo mais do que por descuido a cadela tinha deixado no tapete um "presente perfumado". Foi a gota de água e a loucura apoderou-se dela por completo, os olhos transformaram-se - sei-o porque perdi noção das cores e das formas, atacou o pobre bicho como um animal feroz, mas eu ganhei ganas de protecção de uma das minhas crias e cheguei a tempo de lhe desviar o sapato para a parede, onde ela bateu até desaparecer.
Desta vez ganhei-lhe, mas o que acontecerá da próxima vez que soltar o grito e me morrer a vontade.
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2 comentários:
Entre a vontade de te mimar, de te bater, de te acarinhar, de te dar um raspanete, de te proteger... Permanece a gargalhada! Porquê? Essa da bolacha imaginária... Arrebatou-me. Gosto tanto de ti. És tão preciosa na minha vida, porque fazes por mim exactamente aquilo que disse que te queria fazer, no início deste comentário. Sei que "a outra" te quer chamar a atenção para outras realidades... Mas é apenas inveja! Inveja do marido, do filho, da cadela, da casa... Ainda que tudo seja um caos... Será sempre o TEU caos. E só por isso te reserva o direito, de vez enquando, desatinar com tudo e mandar algumas coisas à merda.
Já te disse que gosto de ti? Gosto tanto de ti!
Obrigado. E não consigo dizer mais porque neste momento, aquela que chora quando tu dizes essas coisas lindas acabou por se apoderar de mim, também ela!Mas...sei que me adoras tanto como eu te adoro a ti, e que fazes os meus dias um pouco mais felizes. Acho que o problema está no facto de ter faltado ao "nosso" jantar e de não ter feito a catarse do "que se foda 2008".
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