quinta-feira, 2 de outubro de 2008

14 de Dezembro de 1997

Chamemos-lhe Paula.

Estávamos no decorrer da semana académica quando a Paula terminou o curso de Economia. Estava feliz e ao mesmo tempo apreensiva, o que seria a vida dela dali para a frente, o eterno dilema de um jovem licenciado em Portugal.
Será que vou arranjar um emprego que sirva a minha ambição? Será que vou arranjar um emprego aqui ou vou ter de ir para Angola onde o meu pai está há já 10 anos…
Estas e outras questões do género estavam a assolá-la quando naquele dia 13 de Dezembro saiu de casa para ir buscar uma amiga, iam festejar a fim do curso e o início de uma nova etapa da sua vida.
A amiga estava em pijama naquela noite fria de sexta-feira, dizia que não lhe apetecia muito sair mas ainda assim, a antecipação do arraial no ISCTE, da dança nas docas, do convívio com os amigos e o namorado, ajudaram a que se vestisse para a festa.
Foram as duas dançar até à meia noite no sitio onde a música mais lhes agradava, gostavam de musica latina e do calor da noite no Havana, beberam uma água das pedra cada uma, o álcool não lhe ajudava a noite, faziam-no sozinhas sem necessitar de estímulos externos.
O namorado da amiga chegou, e os amigos juntaram-se-lhes, estavam prontos para ir. A amiga e a Paula meteram-se no carro desta última. A caminho da Praça de Espanha atravessaram a Av. De Ceuta, ali bem perto da curva da Etar, deviam ir a 60 ou 70 km/h na faixa da esquerda. Falavam das esperanças que tinham no futuro, ou de outra coisa qualquer, (pouco importa), quando a amiga viu umas luzes no local errado, por instantes pensou que um dos carros que circulava em sentido contrário estava estranhamente em cima do separador central e disse: “OH!”
Depois…depois não teve tempo de pensar em mais nada, apenas sabe que ouviu o metal a amachucar porque o som que a acompanhou sempre que a cabeça descansava na almofada.
O carro que circulava na faixa contrária despistou-se, dizem que apanhou água, ela não se lembra de ter chovido naquela noite, galgou o separador central, a policia informou que primeiro tinha batido numa carrinha e só depois no Seat Ibiza em que a Paula e a amiga seguiam.
O automóvel ficou desfeito, o motor caiu e partiu o fémur esquerdo da amiga, na confusão o dedo indicador e o pulso da mão direita bateram algures entre o vidro ou a porta e ficaram também eles partidos, com o impacto a testa abriu um lenho e perdeu os sentidos. Quando a amiga recuperou olhou à volta, a Paula estava sentada no seu lugar, a cabeça encostada ao volante, tinha um ar tranquilo e sereno.
As dores estavam a começar, olhou para a perna e percebeu que estava partida, não que lhe doesse, mas porque estava inchada, sentia o sangue a escorrer pela cara, pensou que tinha partido os dentes, aqueles dentes que sempre achou eram o melhor da sua cara, contou-os com a língua, tinham-se safado, suspirou de alívio, mas olhou para a mão em sangue e assustou-se, tentou tirar o cinto mas não se conseguia mexer, tinha dores paralisantes na zona da barriga.
Alguém lhe perguntava o nome, os telefones para onde se devia contactar a informar do acidente e que os bombeiros estavam a caminho.
Aconteceu tudo muito rápido, para a tirarem foi preciso desencarcerar, ao mesmo tempo ouvia dizer que a Paula não estava a respirar, que era preciso ventilar.
Quando chegou ao hospital, sabia a Paula do outro lado da parede, ouvia o ventilador a ajudá-la a inspirar e a expirar, mas dores começaram a ser insuportáveis e quase não conseguia pensar.
Não sabe ao fim de quanto tempo foi transferida para outro hospital, nunca lhe disseram qual era o estado da Paula, sabia que não tinha morrido, nada mais, foi operada à perna, engessado o braço e a mão, cozida a testa. E para ela a Paula continuava apenas sem ter morrido.
Depois da operação a amiga exigiu conhecer o estado da Paula, estava em coma, com coágulo no cérebro, não sabiam o que lhe iria acontecer, não sabiam sequer se voltaria a acordar e ao acordar qual o seu estado.
Passaram 3 meses, a amiga estava de volta a casa, depois de um mês no hospital iria iniciar a fisioterapia para poder ganhar mobilidade, o joelho não dobrava, a perna não mexia, mas a Paula tinha acordado, e tinha chamado por ela, quis ir vê-la mas não deixaram, não ia ser bom para ninguém diziam os médicos, a Paula não reconhecia nem a mãe.
A amiga teve 1 ano em recuperação, mas conseguiu voltar a ter uma vida normal, voltou à faculdade, aos amigos, à rotina de sempre, a Paula ficou invisual, foi operada à cabeça para retirar o coágulo e meter um dreno, perdeu parte da memória.
A amiga durante 1 ano pensou em cada segundo do que se lembrava naquela noite fria de 13 de Dezembro, lembrou-se que já passava da meia noite e que portanto era já o dia de aniversário da sua bisavó, lembrou-se que não tinha sequer percebido o que lhe tinha acontecido antes de lhe dizerem que tinham tido um acidente, que tinham passado a fazer parte das estatísticas: feridos graves e ligeiros, poli-traumatizados, aquelas palavras a que já nos habituamos a ouvir nas notícias. Durante muito tempo culpou-se, não sabia bem porque razão, mas … porque tinha ela sido o “ferido ligeiro” e a Paula o “ferido grave”, porque não ao contrário?
Uma das perguntas que mais a perseguia era “Porquê ela e não eu?”, depois culpava-se pelos pensamentos que se seguiam à pergunta.
Quando lhe diziam que tinha tido muita sorte respondia invariavelmente que tinha tido muito azar, estava no local errado à hora errada.
Tentou a aproximação com uma Paula diferente daquela que conheceu durante 5 anos, mas de cada vez que olhava para ela sentia-se culpada, culpada de ter recuperado de um acidente que não provocou, e que em nada tinha contribuído. Criticava os amigos da Paula por se afastarem mas acabou por fazer o mesmo, não sabendo se pelas mesmas razões, mas fe-lo. Telefonava à Paula para saber como estava e terminava o telefonema com um nó na garganta, chorava.
Sempre que visitava a Paula sabia que não podia ir sozinha, porque não era suficientemente forte, sabia que acabaria por reviver os sons, os cheiros e as dores daquele dia, era sempre muito duro ver a Paula ou até falar com ela, o sentimento era tão intenso que lhe doía a presença da Paula, e foi-se afastando, e foi deixando que a Paula por sua vez se afastasse.

Sempre que penso na Paula dói-me o peito, pesa-me a consciência pelo muito que devia ter feito e o pouco que fiz, mas ainda hoje não consigo sequer pensar nela sem que me apeteça chorar ou morrer, por isso continuo sem me aproximar e a Paula não voltou a procurar-me, mantendo-se para sempre como um dos fantasmas que percorrem a vida a meu lado e me tornam mais forte, mais eu, consciente de que nem sempre fazemos as escolhas certas aos olhos do mundo, mas antes as escolhas que nos são mais fáceis, ou que tornam o nosso mundo mais suportável.

Sem comentários: